A Polícia Civil instaurou um inquérito para investigar um procedimento estético que não saiu como o esperado em uma clínica odontológica em Angra dos Reis (RJ). O paciente Thiago Delgado, de 35 anos, pagou R$ 1,8 mil para uma aplicação de ácido hialurônico nos lábios e acabou sofrendo um acidente vascular .
No lado superior direito, não houve nenhuma complicação. No lado esquerdo, o problema começou a surgir já no momento da aplicação.
“Ele me receitou um medicamento e eu fui para casa. Chegando em casa, minha mãe viu que eu estava ficando com meu lábio todo roxo. Fui dormir e acordei com uma dor insuportável”, acrescentou.
Preocupado, Thiago ligou para o profissional e retornou ao consultório. “Ele começou a fazer um procedimento em videochamada para um cara que ele chamava de mestre. Ele tremia muito. Não sabia o que fazer. Logo em seguida, quem assumiu o procedimento foi um outro dentista, que eu nunca tinha visto na minha vida. Em nenhum momento, desde o primeiro dia, eu fui informado que poderia dar uma complicação”, reclamou.
Thiago também disse que não autorizou a participação de outros profissionais nos procedimentos de emergência. Sem sentir que estava tendo o acompanhamento que achava adequado, ele procurou uma médica dermatologista que ele confiava.
“Comecei a mandar foto. Liguei pra ela e ela falou pra eu ir pro Rio, pra ser acompanhado por uma equipe especializada. Não consegui ir no mesmo dia. Essa noite foi muito ruim. Eu fui parar no hospital, do hospital eu fui para casa, de casa eu fui pra um posto de saúde tomar morfina”, descreveu.
O paciente disse que o dentista o orientou a seguir os conselhos da dermatologista e prometeu arcar com o custo do tratamento. A avaliação da médica especialista foi feita no quarto dia pós-procedimento.
“O Thiago foi recebido já com estágio avançado de isquemia no rosto, onde a gente conseguia ver uma falta de perfusão muito grande na região do nariz do Thiago, principalmente na asa nasal. A área encontrava-se completamente isquêmica, esbranquiçada, um aspecto marmóreo, um aspecto que a gente chama de mumificado. O paciente nem dor mais apresentava nessa região, devido à falta do suprimento sanguíneo” avaliou a dermatologista.
Segundo Thiago, a equipe médica que o atendeu conseguiu recuperar parte do lábio que também poderia ser atingida, caso ele não fosse corretamente socorrido.
“Eles conseguiram recuperar toda a parte do lábio que seria necrosada. A médica disse que eu tava infartado, como se fosse no coração, mas era no rosto. Aí começaram os procedimentos pra salvar a minha vida. A primeira semana foi de muita luta, muita dor”, detalhou Thiago.
Segundo o paciente, após a primeira semana do tratamento com a médica de sua confiança, o dentista pediu para que ele fizesse uma consulta com outro especialista, justificando que os procedimentos estavam ficando muito caros.
“Fui pra poder ajudá-lo, porque eu vi que tudo estava sendo muito caro. Fui nesse médico. Ele me levou para o centro cirúrgico e já queria tirar essa parte necrosada que eu estou. Ele falou: ‘Thiago, só vai sangrar e a gente vai fazer um curativo. Depois a gente faz uma cirurgia’. Eu falei: você não vai encostar em mim’. E saí de lá desesperado”, lembrou Thiago.
Desde então, Thiago conta que não teve mais nenhum apoio financeiro do dentista e que continua com o tratamento que vinha fazendo com uma equipe médica de sua confiança.
Para pagar os procedimentos, Thiago já vendeu a moto, que tinha comprado há três meses, uma mesa de sinuca e outros itens pessoais, além de pedir ajuda nas redes sociais. Os amigos estão organizando rifas para levantar dinheiro, enquanto a família criou uma “vaquinha” na internet.
“Estou dando continuidade da forma que eu posso. Não está sendo fácil pra mim, nem pra minha família. Nas três primeiras semanas, parecia que eu ia morrer. Eu cheguei a pedir para Deus levar a minha vida, porque eu não ia aguentar tanta dor”, disse Thiago.
O caso vem sendo acompanhado pelo delegado Vilson de Almeida Silva, que aguarda o resultado do exame de corpo de delito para dar prosseguimento na investigação.
“No caso de alegação de erro médico, cabe à Polícia Civil investigar se houve culpa do profissional no atendimento à vítima. Normalmente, a vítima é encaminhada ao IML [Instituto médico legal] para que os peritos analisem se houve culpa no atendimento, ou seja, se o profissional atuou com negligência, imprudência ou imperícia”, explicou o delegado de Angra dos Reis.
O dentista Ronaldo Kora reconheceu o imprevisto durante o procedimento estético.
“O procedimento transcorreu de forma esperada do lado direito, sem qualquer evidência de intercorrência. Entretanto, ao iniciar o lado esquerdo, com a mesma técnica e material já utilizados, houve uma isquemia, que pode ser causada por uma obstrução vascular momentânea”, disse.
Segundo o profissional, a aplicação da enzima para tentar reverter a situação adversa, a mesma indicada pela dermatologista de confiança de Thiago, começou no mesmo dia do procedimento.
“Assim que o paciente relatou os primeiros sintomas de uma possível intercorrência, de forma imediata, iniciei o procedimento de reversão do ocorrido. Além do pronto auxílio, busquei outros profissionais extremamente experientes para reversão da possível obstrução vascular, tudo com a devida ciência e autorização do paciente”, disse o dentista.
“O procedimento de hialuronidase foi repetido nos dois dias seguintes, sendo que, no terceiro dia, a aplicação foi realizada de hora em hora. O procedimento foi realizado com o objetivo de evitar que a intercorrência progredisse. Importante destacar que todos os protocolos descritos na literatura foram rigorosamente seguidos. Contudo, o paciente resolveu que buscaria auxílio com outro profissional.”
Ronaldo disse ainda que Thiago decidiu procurar outros profissionais para seguir com o tratamento e que arcou com as despesas enquanto pode.
“Arquei com todos os custos do Thiago nas primeiras semanas, o que representou um gasto de mais de R$ 50 mil, o que incluiu tratamentos médicos alternativos, hospedagem de luxo, locomoção de táxi, alimentação e etc.”
O dentista confirmou que aconselhou Thiago a procurar um outro profissional, mas lamentou que o paciente não tenha aceitado o tratamento indicado.
“Durante a consulta, o cirurgião plástico nos disse que seria necessária a retirada da casca da lesão ou queda natural da ‘casca’ da asa do nariz para, então, realizar a primeira cirurgia reparadora. Dessa forma, ante à disparidade entre as opiniões médicas, sugeri uma terceira opinião e agendei uma consulta com um renomado cirurgião plástico no âmbito nacional e internacional, o que havia sido aceito pelo Thiago. Entretanto, o seu advogado entrou em contato comigo e informou que o paciente Thiago havia se negado a comparecer à consulta marcada.”
“A obstrução vascular não é comumente revertida em poucas horas. É necessário que o paciente esteja inteiramente favorável aos procedimentos que são fundamentais para reverter esse efeito adverso. Infelizmente, o paciente não se dispôs a seguir integralmente com a conduta adotada por mim”, finalizou.
O Conselho Federal de Odontologia (CFO) reconhece como especialidade odontológica procedimentos de harmonização orofacial, entre elas, o preenchimento labial com ácido hialurônico, conforme a Resolução CFO-198/2019.
Assim que for notificado, caso seja identificado descumprimento de alguma regra, o profissional poderá responder por processo ético-disciplinar.
“A prioridade do Conselho é garantir o respeito à saúde da população e a qualidade da Odontologia nacional, de acordo com a legislação vigente, que inclui também o Código de Ética Odontológica”, concluiu.