É enganosa a publicação feita por uma deputada federal com a afirmação de que o maior estudo sobre ivermectina no combate à covid-19 teria sido realizado no Brasil e demonstraria a eficácia do medicamento contra a doença. Especialistas ouvidos pelo Comprova identificaram fragilidade na metodologia da pesquisa, incluindo a falta de acompanhamento dos participantes e a imprecisão dos dados coletados. Trechos do próprio estudo confirmam serem necessários mais levantamentos para avaliar a suposta eficácia do vermífugo contra o coronavírus.*
Conteúdo verificado: Publicação no Twitter diz que o maior estudo sobre ivermectina no combate à covid-19 foi feito no Brasil e que as conclusões comprovam a eficácia do remédio no tratamento da doença. O post traz um trecho de uma declaração do médico Pierre Kory em evento realizado no Senado dos Estados Unidos.
É enganosa uma publicação feita no Twitter pela deputada federal Bia Kicis (União-DF) e que atribui a um estudo realizado na cidade de Itajaí (SC) a suposta confirmação de que a ivermectina, um antiparasitário, seria eficaz no “tratamento precoce” contra a covid-19. Na rede social, Kicis afirma que o estudo “prova sem sombra de dúvida que a ivermectina funciona”. Além disso, a parlamentar afirma que esta é a maior pesquisa do mundo relacionada ao tema.
O post foi feito com base no vídeo de uma transmissão de um evento realizado no Senado dos Estados Unidos. Na oportunidade, o médico especialista em cuidados pulmonares Pierre Kory cita o estudo para defender o uso do medicamento. Kory é representante de uma associação formada por profissionais de saúde americanos que defendem temas como o tratamento precoce contra o coronavírus, para o qual não há comprovação científica.
A pesquisa citada pelo médico no vídeo aqui verificado foi publicada na revista científica Cureus em 15 de janeiro deste ano e passou por revisão de pares, segundo os autores. O objetivo era avaliar o impacto do uso regular de ivermectina nas taxas de infecção e mortalidade por covid-19 na cidade catarinense. Os dados foram coletados entre julho e dezembro de 2020, portanto, quando ainda não havia a campanha nacional de vacinação.
De acordo com o estudo, a taxa de infecção por coronavírus entre os usuários do medicamento moradores de Itajaí foi de 3,7%. Já o porcentual entre não usuários foi de 6,6%. Ainda segundo a pesquisa, o remédio reduziu em 68% a taxa de mortalidade por covid-19 e em 56% a chance de hospitalização pela doença. Os autores do documento afirmam que os resultados apontam para eficácia da ivermectina no tratamento profilático contra a covid-19, mas também ponderam no texto que estudos mais robustos são necessários.
Especialistas consultados pela equipe do Comprova afirmaram que um estudo observacional, como é o caso, pode gerar indícios para que novas pesquisas sejam realizadas sobre um tema, porém não criam uma verdade científica. Esses profissionais também apontaram possíveis inconsistências nos dados do levantamento citado no vídeo e destacaram que atualmente não há evidências que confirmem a eficácia da ivermectina como tratamento profilático contra a covid-19.
A farmacêutica Merck Sharp & Dohme (MSD), responsável pela criação do medicamento, também já afirmou que não há evidência científica sobre a efetividade da ivermectina contra a covid-19.
O estudo é assinado por nove pessoas, mas foi liderado pela médica Lucy Kerr, a favor do uso da ivermectina, e coproduzido pelo endocrinologista Flávio Cadegiani. O médico foi indiciado pela CPI da Pandemia sob acusação de crime contra a humanidade: ele fez parte de um estudo clínico com o medicamento experimental proxalutamida, proposto inicialmente para o tratamento de câncer, que teria levado 200 pessoas a óbito.
Os pesquisadores convidaram a população de Itajaí para retirar, voluntariamente, comprimidos de ivermectina oferecidos nos postos de saúde do município. A orientação era para que os pacientes tomassem o remédio por dois dias consecutivos a cada 15 dias.
A Prefeitura de Itajaí, no entanto, informou que a busca pelo medicamento no SUS não se manteve estável, o que, segundo especialistas consultados pelo Comprova, altera os resultados obtidos e impede uma conclusão sobre os efeitos do medicamento em uma população.
No texto do estudo, os autores afirmam que foram considerados 223 mil cidadãos de Itajaí para a pesquisa. Destes, 159 mil foram incluídos na análise (113 mil como usuários de ivermectina e 45 mil que não usaram o medicamento).
Procurada pelo Comprova, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) encaminhou uma planilha com a lista de estudos autorizados no Brasil sobre uso de ivermectina no tratamento contra a covid-19. Usando o número do Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE), que consta no estudo publicado, foi possível identificar que a pesquisa de Itajaí foi registrada com uma amostra de 9.956 participantes.
Há outros dois estudos brasileiros sobre o tema com amostras maiores (de 10 mil e 43 mil). Pelos dados oficiais, portanto, a pesquisa citada pela deputada não pode ser considerada a maior sobre ivermectina no Brasil. Além disso, a quantidade de participantes não significa que os resultados sejam os mais precisos sobre o assunto, pois isso depende de como a análise foi feita.
Questionada sobre o tema, Kerr afirmou que a aprovação da pesquisa foi relacionada aos casos de covid-19 e não sobre o uso de ivermectina. O número de 9.956 pessoas é citado no estudo como referência à quantidade geral de pessoas que tiveram covid-19 em Itajaí antes e durante do período do programa de distribuição de ivermectina (não está claro até quando vai este período).
Este levantamento tem sido divulgado por seus autores como o maior do mundo porque eles citam a quantidade de cidadãos que supostamente tomaram o medicamento, mas esta informação não condiz com o registro oficial de amostra do estudo. Além disso, com base na informação divulgada pela Prefeitura de Itajaí, houve queda na quantidade de pessoas que buscaram a ivermectina nas unidades de saúde.
Coordenador do Conep, Jorge Venancio disse que a situação pode ser irregular e precisa ser analisada.
A pesquisa foi publicada em um periódico que tem sede na Califórnia, nos Estados Unidos. A revista recebeu a última nota de importância e de qualidade atribuída pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) às publicações científicas usadas no Brasil, em uma escala dividida em oito níveis. Especialistas dizem que o periódico tem peso zero na comunidade.
O Comprova classificou o conteúdo como enganoso porque usa dados imprecisos.