“Não era amor quando me afastei de todos os meus amigos para estar numa relação.”
“Não era amor quando eu tinha que me desculpar por algo que eu não tinha culpa só para que as coisas ficassem ‘bem’.”
“Não era amor quando ele me dizia que eu tinha sorte dele me amar tanto pq ninguém me suportaria.”
Essas são algumas das mensagens que circulam no Twitter na semana do Dia dos Namorados, comemorado em 12 de junho no Brasil. Elas são parte da campanha #NãoEraAmorQuando, criada para alertar sobre características comuns em relacionamentos abusivos.
No momento em que fotos de casais apaixonados inundam os comerciais e as redes sociais, o objetivo da campanha é expor sinais de relacionamentos abusivos, sejam eles físicos ou psicológicos. Esses relacionamentos são marcados por controle, manipulação e até agressões.
Os efeitos dos relacionamentos abusivos têm se intensificado durante a pandemia do coronavírus, quando casais estão confinados e, muitas vezes, isolados de amigos e familiares, segundo a psicóloga e especialista em relacionamentos abusivos Pollyanna Abreu, fundadora da Não Era Amor, startup criada para ajudar mulheres que estão ou saíram de relacionamentos abusivos e responsável pela campanha.
“As mulheres que estão em casa com agressores na pandemia estão encurraladas. Elas não têm mais nem mesmo o momento de levar o filho para a escola ou a distância de quando o marido ou namorado sai para trabalhar.”
Nos últimos meses, 243 milhões de mulheres e adolescentes de 15 a 49 anos foram submetidas a violência sexual e/ou física por um parceiro íntimo, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres. “Como resultado do isolamento imposto para impedir a disseminação da covid-19, dados mostram que esse tipo de violência se intensificou”, aponta a entidade.
As vítimas são sempre mulheres? Não necessariamente, diz Abreu, mas na maioria das vezes. Diferentes pesquisas apontam, segundo ela, que em mais de 80% dos casos o abusador é um homem e a vítima é uma mulher.
Uma em cada três mulheres já sofreu violência sexual ou física, segundo a ONU, que aponta que a maioria é praticada por parceiros.
Em entrevista à psicóloga tira dúvidas sobre relacionamentos abusivos. A seguir, veja os principais pontos:
O que é um relacionamento abusivo?
Em um relacionamento abusivo, existe pelo menos um destes tipos de violência, segundo Abreu: verbal, emocional, psicológica, física, sexual, financeira e tecnológica (esta vai desde controle velado das redes sociais da vítima até insistência em obter senhas pessoais, controle de conversas, curtidas e amizades online).
Para caracterizá-lo, são levados em conta fatores como o sofrimento causado em uma pessoa, a frequência dos abusos, ciclos de agressão e escalonamento da violência.
“Ele tira o poder social dessa mulher principalmente com pessoas que teriam condições de alertá-la. E isso pode acontecer de forma sutil, como comprando propositalmente uma casa lá do outro lado da cidade, ou falando que as amigas não prestam. As coisas vão se escalando e a última etapa, em alguns casos, é o feminicídio, ou seja, quando essa mulher é morta.”
Nas relações abusivas, segundo ela, há discrepância no poder de um em relação ao outro, ou seja, uma posição de desigualdade. Esse tipo de relacionamento segue alguns padrões e gera sentimentos recorrentes como dúvidas, confusão mental, ansiedade, insegurança e esperança de que o parceiro mude e os abusos cessem.
A psicóloga aponta que, nessas relações, o outro se torna o centro da sua vida e seu comportamento é moldado com referência ao que ele espera de você. Aí, o resultado é que isso interfere na sua relação com a família, amigos, trabalho e, principalmente, na forma com que você se enxerga.
Mas só há momentos de agressão nesse tipo de relacionamento? Não. “Mas até as partes que as pessoas costumam chamar de partes boas pode ser uma compensação ou manipulação pós abuso. É uma promessa de mudança que nunca vai vir, uma estratégia.”
São três as fases presentes nessas relações, e uma delas é exatamente o que a especialista chama de lua de mel.
A primeira fase, segundo ela, é a tensão. “É quando a mulher vai cedendo: não corta o cabelo porque ele disse pra não cortar, troca a roupa que ele pediu, vai perdendo a identidade.”
A segunda fase é a da crise. “É quando tem briga e mais escalonamento da violência, é quando ela é xingada ou sofre abuso físico ou sexual.”
A terceira fase é a lua de mel. “São conversas íntimas, sexo intenso, é quando ele promete que vai mudar.”
Esse ciclo se repete, segundo Abreu, mas tem durações diferentes em cada relação. “Uma mulher pode apanhar uma vez por ano e ao longo do resto do ano ele só a ameaça sutilmente. E uma outra mulher que não sofre violência física pode passar por todas essas etapas em um mesmo dia (no discurso).”
E tudo isso gera um combo de medo, culpa e vergonha, segundo a psicóloga.
Como sair de um relacionamento abusivo?
Abreu diz que é “quase impossível” sair de um relacionamento abusivo sem algum tipo de intervenção social: seja uma amiga, uma terapia ou uma vizinha que chamou a polícia.
“A mesma sociedade que cria solo fértil para um relacionamento abusivo é a que culpa essa mulher porque ela não consegue sair desse relacionamento. Falta ajuda desde o atendimento psicológico, passando por polícia e pela aplicação da lei.”
Além disso, o abuso financeiro é um dos principais motivos para o alto número de violência contra a mulher. Sem renda própria elas são manipuladas, humilhadas, controladas e até agredidas física e sexualmente. “Isso não quer dizer que mulheres independentes financeiramente também não entrem em relacionamentos abusivos, mas a dependência financeira dificulta a saída desses relacionamentos.”
O abuso financeiro pode começar de forma sutil, com o parceiro tomando as decisões financeiras pela mulher, e chegar a situações em que ele pega o cartão de crédito, pergunta onde ela iria morar se eles se separassem, diz que ela não teria dinheiro para pagar um advogado.
Outro problema, segundo a psicóloga, é que desde crianças meninos e meninas aprendem que violência pode significar amor. “A gente aprende desde pequena que abuso é amor. O menininho bate em você e algum adulto diz que ele bateu em você porque ele gosta de você. Você escuta isso desde pequena.”
Então como ajudar uma amiga em relacionamento abusivo?
Para situações de emergência, como no momento em que uma vizinha está sofrendo violência, a orientação é ligar para a polícia (190). Se for para denunciar casos de violência que não está ocorrendo naquele exato momento, a orientação é entrar em contato com a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180), que é um serviço do governo federal, gratuito e que preserva o anonimato.
Além desses casos, a psicóloga diz que é importante oferecer ajuda para a vítima, perguntar como ela está, ajudá-la a entender o que ela está passando. Também é recomendado oferecer ajudas práticas: oferecer para ela dormir na sua casa ou ajudá-la no pagamento de um advogado ou atendimento psicológico, se você puder.
“Essa mulher está culpada, isolada, com vergonha de pedir ajuda, sem dinheiro, e muitas vezes já teve ajuda negada.”
O que não ninguém deve fazer, segundo Abreu, é colocar mais culpa nessa mulher, como perguntar o que ela fez para isso acontecer. Nem mesmo dizer para ela terminar o relacionamento na hora é recomendado, de acordo com a especialista.
“Não exija que essa mulher termine se ela não tiver forte o suficiente. Exigir o término vai ter efeito contrário: ela vai se sentir pouco acolhida, cobrada e retomar a relação ainda mais forte com o abusador porque não encontrou apoio fora da relação.”
Ela recomenda sugerir leituras e vídeos para que a vítima se informe sobre o tema, sugerir uma terapia e, sobretudo, não julgá-la.
“Não julgar, não cobrar, não pressionar, oferecer ajuda do coração e saber que quando a gente ajuda uma mulher nesse contexto pode ser que o tempo dela não tenha chegado ainda, mas saiba que você plantou uma sementinha e ela saberá que pode recorrer a você.”
A experiência de Abreu com atendimentos nessa área aponta, segundo ela, que esse apoio continuado normalmente vem de amigas ou familiares mais próximas. Quando é um caso de emergência, normalmente a intervenção é feita por uma vizinha ou vizinho.
O fim de um relacionamento abusivo
“O término de um relacionamento abusivo é muito diferente do fim de um relacionamento saudável. 70% das mulheres que morrem em casos de violência doméstica morrem no término, que é o momento que esse abusador sente que já não tem mais nada a perder.”
“O término é o maior ‘não’ que esse abusador recebeu dessa mulher na vida. O que acontece depois é um show de horrores. Ele vai no ponto fraco dela: pode dizer que agora vai fazer terapia, que agora aceita ter filho, ou se o sonho dela é se mudar, ele vai dizer que vai se mudar. Ou pode ficar ainda mais agressivo e mais manipulador.”
É por isso que ela diz não aconselhar um término presencial.
“E sugerimos contato zero com o ex para quem não tem filhos, e um contato mínimo para as que são mães. É assim que essa mulher consegue se proteger e iniciar um processo de fortalecimento”.