Uma liminar concedida na última segunda-feira (31) pelo Tribunal de Justiça do Rio garantiu à advogada Sílvia (nome fictício), de 42 anos, a tranquilidade que buscava para imunizar seu filho de 8 anos contra a covid-19 – o que ela fez no dia seguinte, logo de manhã. O pai do menino é contrário à vacinação e havia enviado à ex-mulher uma notificação extrajudicial dizendo que ela não poderia tomar a decisão unilateralmente.
A advogada sabia que, como mãe, poderia entrar em qualquer posto de saúde e vacinar a criança, ignorando a notificação do ex-marido. Mas queria se precaver de eventuais retaliações e pediu a liminar.
A imunização infantil contra o coronavírus é segura e eficaz, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e dezenas de entidades científicas. Embora não seja o grupo de maior risco para a covid, há possibilidade de agravamento da doença entre os mais novos. Além disso, a vacina ajuda a frear o espalhamento do vírus.
O mesmo dilema de Sílvia é vivido pela professora Fabiana (nome fictício), de 36 anos, de São Paulo. O ex-marido a avisou que, se a mãe vacinar o filho de 7 anos, usará isso como argumento na Justiça para obter a guarda unilateral da criança. “Ele alega coisas que não consegue provar para pedir a guarda unilateral”, conta ela. “E agora está me ameaçando com essa história da vacina”, acrescenta.
Fabiana explica ao filho a importância da vacinação. Mas, quando o menino volta da casa do pai, diz que não quer se vacinar porque o imunizante pode matá-lo. Especialistas têm apontado a desinformação como um dos maiores entraves ao avanço da vacinação infantil contra a covid no Brasil.
“Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a vacinação é obrigatória, mas fico sem saber o que fazer. Sinto que preciso de respaldo”, diz a professora, que já procurou um advogado para orientá-la. “Não quero forçar o menino a uma situação que vai prejudicar muito a cabecinha dele; nem arriscar a perda da guarda compartilhada.”
O ECA afirma, em seu artigo 14, que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.
Na lei
Ouvidora do Tribunal de Justiça do Rio, a juíza Andrea Pachá, que atuou por mais de 15 anos em Varas de Família, diz que o ECA não poderia ser mais claro. “Juridicamente, é um debate inexistente; a lei diz que a vacina é obrigatória, que é um direito da criança”, afirma. “A ciência está posicionada; a vacina é importante para a proteção das crianças, e também como instrumento de proteção coletiva, para o fim da pandemia.”
O problema, diz, é a campanha de desinformação promovida, muitas vezes, pelo próprio governo federal, que acaba criando incertezas. O presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, fez declarações que colocam em xeque a segurança dos imunizantes e disse que não vai levar para a vacinação a filha de 11 anos.
Por isso, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) recomenda que os pais busquem o respaldo judicial. Sobretudo em casos de guarda compartilhada, em que, por lei, todas as decisões relativas à criança devem ser tomadas em conjunto.
“Não recomendo vacinar a criança na marra”, afirma a advogada Tawnni Barcellos Rabello, da Comissão do Direito da Família da OAB. “Para estar resguardado pela lei e não ter um problema mais na frente, o correto é colocar a decisão na mão de um juiz. Esses casos são considerados de urgência, não costumam demorar”, diz.
Negacionismo
Os pais das duas crianças citadas nesta reportagem apresentaram a suas ex-mulheres argumentos parecidos para não aprovarem a vacinação dos filhos. Os dois alegam que a “vacina é experimental”. Dizem também que as mortes por covid entre crianças são muito raras. Os dois pais, no entanto, se vacinaram
“Essa decisão (do ex-marido) não é pelo bem da criança, é uma questão ideológica”, avalia Fabiana. “Ele segue o que vê no WhatsApp, não procura se informar, é muito fervoroso. Mas ele mesmo se vacinou. Não tem fundamento o que ele diz”, comenta.
Como no caso de Sílvia, que conseguiu a liminar, a Justiça já fechou questão: não vai acatar razões ideológicas para impedir a vacinação das crianças. O Fórum Nacional da Justiça Protetiva, que reúne juízes da Infância de todo o País, já reafirmou em comunicado nacional a obrigatoriedade da vacinar crianças e adolescentes contra a covid, com base no ECA. As penas para descumprimento são multa, advertência e, até mesmo, em casos extremos, perda da guarda.
A decisão está respaldada na ciência. As vacinas contra a covid-19 não são experimentais, diferentemente do que argumentam os pais das crianças. Elas foram desenvolvidas por cientistas, testadas em laboratório e em animais. Finalmente, foram aplicadas em humanos em três etapas – a última com dezenas de milhares de pessoas. Os procedimentos seguiram protocolos científicos internacionais.
Posteriormente, esses imunizantes foram aprovados pelas agências sanitárias de vários países, caso da Anvisa, no Brasil, e da FDA, nos Estados Unidos, entre outras. Após ser aprovada pela autoridade sanitária, a vacina não é mais considerada experimental.
A incidência da doença entre crianças é, de fato, menor do que entre os mais velhos, bem como o número de mortes. Mas não são desprezíveis. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), 1.544 crianças de 0 a 11 anos morreram de covid no País desde o início da pandemia.
“A covid matou mais crianças no Brasil do que todas as doenças do calendário de vacinação juntas, como sarampo e meningite”, explica o pediatra Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da SBP. “Além disso, não vacinamos as crianças apenas para evitar mortes. Imunizamos para diminuir as internações, evitar sofrimento, interromper a transmissão do vírus na sociedade”, diz.